terça-feira, 20 de março de 2012

trapo

São quinze minutos de quarta-feira, amigo. Pela lei você deveria estar dormindo a duas horas. Ainda pela lei deveríamos ainda viver uma terça. No entanto, você está acordado, ainda tem algo a fazer. Não teve outra ideia além de escrever sobre o fato de que deve escrever. Tente entender você mesmo. Deu seu suor, o sumo de suas energias para contribuir com o lucro bilionário de duas multinacionais gigantescas. O seu melhor se esvaiu com os raios de sol. Também teve seu lucro, escorreu em alguns dos vícios que você sustenta para suportar sua difícil rotina. Lidar com toda essa massa ignorante, todos esses doentes, escarnecedores e estúpidos, cães de caça girando ensandecidos na ininterrupta tentativa de abocanhar os próprios rabos. Orgulhosos e vaidosos, girando. E veio a noite, e embriagado no dolce far niente você sucumbiu ao tempo. Mais um dia se fez findo e você ignorou a lei, foi infiel e incauto. Serviu aos cães, mas esqueceu-se de servir sua causa, e o estomago de seu senhor arde em fúria contra ti. Ai de mim, dormir e entregar esse dia como pérolas aos porcos, ai de mim! Minha oferta é um trapo, esticado como as horas longas desse dia, e sujo como meus pensamentos mais silenciosos. Não poderemos negar, porém, que na proporção da lucidez de suas deficiências cresce a certeza de sua presença, posto que não existindo, nem poderia ser corrido, nem feio, nem torto, nem nada.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Bloco

Lavou o rosto, tentando encontrar ânimo em algum lugar profundo, o mundo desmoronava em sua cabeça, dizer que sua vida estava de cabeça para baixo era errado, sua vida estava estilhaçada, dançando em pedaços caóticos pelo ar, e mais uma vez ele havia sido rejeitado, poderia quase sorrir, tão absurdas eram suas emoções, precisava engolir aquela tristeza goela abaixo e dar fim naquele dia amargo.

Seguiu de volta para sua tormenta, sua bata branca brandia contra o ar no andar apressado, as mangas compridas enrolavam-se no seu braço um tanto esbagaçadas, olheiras profundas escondiam-se atrás das lentes grossas, os cabelos, apesar de ainda curtos, denunciavam a ausência de um corte regular, seus colegas de empresa costumam parecer médicos ou enfermeiros andando dentro de um supermercado, ele se assemelhava mais a figura de um inquieto cientista maluco.

Ultrapassava seu horário em meia hora, alimentava a vaga esperança de permanecer apenas mais vinte minutos para finalizar suas atividades do dia, nos últimos três dias havia acumulado quase um dia a mais de trabalho, não queria repetir o doloroso processo, não recebia horas extras e simplesmente não conseguia se manter confortável com a sensação de estar trabalhando gratuitamente.

Repentinamente tudo desapareceu.

Naquele sapato o ultrapassava em altura, os tornozelos insinuavam maravilhosas pernas escondidas embaixo dum longo vestido azul, ou verde, ou amarelo, ou talvez ainda fosse apenas uma saia de tecido leve... longos cabelos ondulados bifurcavam-se sobre o ombro nu e alvo, ardiam num vermelho flamejante, o dedo indicador brincava hipinoticamente com seu lábio inferior, franzia o olhar, lendo as miúdas informações sobre alguma marca vagabunda de macarrão instantâneo.

Reconheceu facilmente aquele nariz afilado, o perfil élfico, havia música ali, ela e mais nada. Logo estava tão perto, e sussurrou como pode, talvez quase trêmulo, mas de forma alguma hesitante.

- posso te ajudar? -

Virou o rosto vagarosamente, fingindo distração, expondo delicadamente seu pescoço e finalmente cedeu seu olhar mágico. Nada poderia descrever o quanto ele se esforçou para refletir tudo que sentia naquele olhar, um brilho profundo denunciava a força de vários planetas explodindo dentro de tudo que se mostrava vivo nele, mantendo firme, sério, e absolutamente transparente.

Ela apenas insinuou um sorriso, e respondeu.

-Não, obrigada... to só dando uma olhadinha... -

Destroçado, desconcertado, perdido, imóvel, todas as palavras do universo deixaram de existir, e ele a assistiu ir embora, sem ao menos o reconhecer. O mundo foi se reconstruindo, até voltar finalmente a se fazer existente, e ao seu lado um homenzinho de traços indígenas e idade que poderia variar entre dezoito e quarenta anos sem muita certeza, apareceu parado, como se estivesse ali desde sempre, vagamente boquiaberto.

- caraca... -

disse o pequeno homem…

- pois é... -

Suspirou. Ouviu-se um estrondo em cascata, e todos olhares acompanharam uma avalanche de latas de leite condensado, e em algum lugar distante os passos de uma criança corriam para dentro do carro dos pais, recheados de temor e culpa. Iam-se cinco dias de trabalho em apenas três dias de vida.