segunda-feira, 12 de novembro de 2012

RIP N8 ( 2012 - 2012 )



Minha fama de destruidor vai longe... não durou um ano. Corridinha para fugir da chuva, caiu do meu bolso sem eu perceber, entrei no carro, fui embora. Quando percebi era tarde. Voltei ao lugar e encontrei só a capinha.


Fico imaginando meu N8 quicando no asfalto, cercado por partículas de areia molhada e gotas de chuva, girando em varias direções em torno de si mesmo. Pequenos pedacinhos de pedregulho riscando a tela. A capinha se separando. Um ou outro carro passando por cima. Enquanto vou me distânciando, num carro, sem imaginar o que acaba de acontecer. 

Vem um garoto, correndo pra pegar o próximo ônibus, chuta sem querer o pequeno objeto, já meio caraquento, próximo ao meio fio. Abaixa, pega o celular, limpa um pouco a sujeira com a camisa, e percebe que ainda está ligado e funcionando. Olha em volta, ninguém parece ter visto, ninguém parece estar procurando. Então rapidamente ele embolsa o aparelho e entra no ônibus.

Sente uma agoniazinha boa, o lucro fácil, a sorte lhe brindou hoje. A perda sempre é pelo azar, nunca pela imprudência. Enquanto o sucesso só vem com a sorte, nunca pelo trabalho, nunca pela dedicação. As vezes eu acho que tem gente demais pensando assim.    

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Crazy Mode On (imersão total)




Decidi entrar numa prática que chamei de imersão total. É basicamente uma forma de criar foco para melhor aproveitamento do tempo. Quando com muito tempo livre tenho a tendência a desvalorizar o meu tempo, desperdiçando num ciclo de ócio sem fim: “um pouco para dormir, um pouco para toscanejar, um pouco para encruzar os braços em repouso” (Pv 6:10).

Além de estar cansado do descanso, me parece saudável mudar um pouco o rumo das coisas através desse, digamos, método.

Consiste basicamente em limitar as minhas atividades diárias em três, e nada pode ser praticado se não estiver dentro de uma delas. São elas: Produção, informação e manutenção. Significa que se eu não estiver produzindo algo, isto é, de alguma forma trabalhando, tenho que estar me informando, ou estudando algo, jamais de forma aleatória, mas metodologicamente. Ainda, se eu não estiver numa dessas duas atividades, tenho que estar cuidando da manutenção de algo estritamente necessário. Dormir, tomar banho, lavar a louça e ir ao médico são exemplos práticos da área de manutenção.

Obviamente, não da pra fazer isso durante muito tempo sem emergir para respirar eventualmente, tirar algumas horas de folga de tempos em tempos para não acumular carga demais. Depois, tornar a imergir, e repetir o processo, talvez durante alguns meses, até atingir um determinado objetivo.

Venho pensado em fazer isso durante muito tempo, acredito ser o momento ideal. Sigo para meu primeiro mergulho, não sei quantos dias vou ficar imerso, mas se possível, mandarei notícias por aqui. Subirei também qualquer texto interessante que aparecer no caminho, ou qualquer tipo de coisa produzida que caiba no formato.

Sem mais, até mais. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Triforce


Os seus familiares podem falhar, as pessoas em quem você confia, a estrutura debaixo dos seus pés pode ruir. Isso pode acontecer, com ou sem sinais claros. É importante saber que certas bases que um dia nos apoiaram não são bases que garantidamente poderão nos apoiar sempre. É possível usufruir de comodidade e de riqueza no seio da sua família, as vezes sim, mas como poder manter a constância de tais recursos?

Faz da reflexão um estado constante, não seja demasiadamente simplório, tão pouco demasiadamente complicado, boa medida é praticidade, nada raso, fundo na medida certa. Nem toda abstração é válida, por isso faz-se necessário não apenas refletir, mas ler.

Quando me refiro a leitura não me refiro apenas a livros, falo além, do habito de ler em volta, o observar reflexivo, te veste disso, pondera o valor daquilo a que dedica seus olhos, porém não esqueça do peso do silêncio.
O silêncio é um peso bom, te ajuda a refletir e ler sem distorções, o barulho da língua é perigosamente caótico e desequilibrador, foge dele, ponderando demoradamente cada palavra, aplica filtros se necessário.

Por isso digo, firma uma de tuas bases em silêncio, leitura, e reflexão, te servirão melhor que berço, te protegerão melhor que abrigo, te sustentarão melhor que riquezas.

Teus amores vão te trair, tuas paixões te condenar, amigos hão de desamparar-te, o carinho por muito te prenderá não apenas pelos tornozelos, e o receio de perder cada doce partícula vai travar teu caminho, seu corpo correrá contra a direção da prudência, mas a disciplina não precisa te trair.

Faz da disciplina teu amor, tua paixão, tua amiga, dedica-se a ela como noivo loucamente apaixonado, quando todos falharem ela irá te suprir. Faça-se servo e mestre, dorme e acorda em disciplina, aprende nela o prazer dela, apega-se pois a ela e a mais nada, nem ninguém.

Acaricia demoradamente o desapego a tudo, pois tudo o que conheces logo será pó. E as lembranças daquilo que fez e viveu, por mais que lutem, pó também serão. Portanto se apegar é loucura, assim como temer em demasia.

Tal qual um artesão talha a madeira sem medo da dor da madeira, não teme talhar o que estiver a seu alcance em busca da melhor forma. Somos tão pequenos e efêmeros que diante de nós tudo é abundante e passageiro, e observe que não há o que temer.

O medo é bom diante das feras, é bom diante da necessidade de correr para sobreviver, te faz pular mais alto, te fazer correr mais rápido, multiplica teus pulmões e adormece a dor dos seus músculos machucados. Fora disso, toma muito cuidado com o temor, tende a ser mais perigoso do que suas motivações em existir.

Por isso digo, firma uma de tuas bases em desapego, destemor, disciplina, te servirão melhor que amores, paixões e amigos, te sustentarão melhor que riquezas.

Por último, tua estrutura é carne, cedo ou tarde falhará. Enquanto tens tempo, no entanto, usa da melhor forma essa carne que tens. Não falo pelo amanhã, seu fardo será apodrecer, falo pelo hoje. Mais importante do que teu trabalho, teus amigos, ou tuas bases, é o teu corpo em si.

Por isso digo, não despreza o bom sono, a boa alimentação, e as boas práticas físicas. Não há razão para aplicar-se a nenhuma das bases anteriores sem ter essa base firmada, seria como uma tripulação em alto mar sem nenhuma embarcação.     

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sobredores


Cara, eu não costumo gostar muito de falar sobre dor. Mas outro dia uma garota me olhou e disse: "Você parece muito machucado." revisitando esse blog entregue as traças, com o perdão das traças, reouvindo uma música que postei aqui... Acho que é um fato, eu realmente sofri bastante. Acontece que todo mundo sofre e não acredito que devemos acariciar nossas dores. Por isso esse post não é sobre dor. É, sim, sobre o apesar das dores. Como não podemos falar sobre o apesar das dores sem falar das dores, de repente eu fale um pouquinho sobre dor, sobre perda, sobre sofrimento.


Não quero contar cicatrizes, não se trata disso, perto de algumas pessoas bem próximas a minha vida foi até bem tranquila, eu nunca passei fome, nunca fiquei sem ter onde morar. Pessoas vieram, outras se foram pra sempre, gente deixou de existir depois de muito lutar, as estruturas sempre se modificaram, as coisas mudaram de lugar, mas e aí, posso reclamar? Não. Eu reclamo, as vezes, como um garoto mimado que não deixei de ser, mas, poder mesmo... no sentindo de ter o direito de reclamar, não acredito que eu tenha esse direito. Por isso evito reclames.


Essa gente que reclama muito estima demais a felicidade e demoniza demasiadamente a tristeza. Não apenas estimam demais a felicidade, como projetam uma felicidade que não existe, a buscam, obviamente não encontram, e se entregam a uma suposta tristeza irremediável, a qual cultuam como fervorosos fiéis de uma religião maluca. Sério, você acredita mesmo que a vida se resume a fugir da tristeza e correr atrás da felicidade? Acho que não.


Sei que algumas pessoas amargam dores profundas das quais gostariam muito de se livrar, mas não são capazes, sei que isso é real e sério, mas o que eu mais vejo é gente se doendo de barriga cheia! E sabe como eu chamo isso? Comodismo. Bancar o coitado sofrido te livra de encarar seus problemas com a postura de agente de mudança, saca? Bem, também não é sobre isso que eu vim falar.


Eu sofri sim, essas coisas imponderáveis da vida já me deram tijoladas na cabeça, e também já colhi alguns amargos frutinhos da minha própria indisciplina. Nada saboroso, acredite. Mas putz(!), não dá pra comparar aos bons sabores... e olha, que eu nem sou um cara viajado, apenas olho em volta. fiquei pensando sobre o que a garota falou... Machucado, eu? Tô não. Tô sussa... 

domingo, 17 de junho de 2012

É difícil manter o sonho fora da confusão depois que se acorda.


Eu, meu primo Saulo, e nossos amigos Brunno e Neto, sentados numa garegem. Através do portão aberto vejo duas figuras sob sol. Moças muito brancas, esbeltas, de cabelos lisos e muito escuros. Vestem trajes de praia. Uma delas é bem mais alta, lábios marcantes e aparenta ter cerca de vinte anos, é Raysa, irmã mais nova de uma antiga amiga de colégio. A outra é muito menor e visivelmente ainda uma criança, talvez irmã caçula.

Passaram em frente a garagem e apenas observei. Finalmente vejo outra jovem também muito branca, não muito alta, com cabelos lisos, escuros e compridos. No sonho eu a reconheci facilmente, porém alguma cosia me incomodava.

Antes de passar completamente pela entrada da garagem ela me olhou, franziu a testa, então entrou, caminhando na minha direção. Disse: 

- Eu conheço você...

Apesar de saber quem era, tive algumas dificuldades de lembrar do nome. Tinha a pele mais branca do que na realidade, e seus olhos eram um pouco mais puxados que os da realidade, e ela ainda carregava alguma coisa um tanto mágica, quase angelical, também destoando um pouco da realidade. 

- Eu conheço você também. 
- Quem sou eu então?

Hesitei um tanto, até pronunciar cuidadosamente, como quem pisa descalço num chão cheio de pedras. 

- ...Camila. 
- Camila de quê?

Ela respondia rápido, estava muito próxima, parecia procurar meu desconforto, e parecia se divertir com isso. 

- … Alves? 
- Você errou! 
- É mesmo? E eu, quem eu sou?
- Você é o Ed. 
- Qual meu sobrenome? 
- Britto...

Ela riu, meus amigos riam também. Ela estava indo até uma praia. Deixei meus amigos na garagem e segui a pé, abraçado com a jovem. Não lembro sobre o que conversamos, me sentia bem pela proximidade, ao mesmo tempo um tanto desconfortável.

Nos aproximamos de um carro estacionado onde estavam os pais da Camila. Não condiziam com a imagem dos pais reais dela, mas eu não questionei isso durante o sono. Cumprimentei os dois, foram muito simpáticos. Ela ficou no carro e eu voltei pela calçada até chegar novamente na casa onde estavam meus amigos.

Durante o caminho pensei sobre as minhas amizades. Sobre os muitos círculos diferentes. No caso de uma catástrofe, durante uma epidemia zumbi, ou qualquer outra coisas que desestruturasse a sociedade, com qual grupo eu iria preferir ficar?

O restante dessa parte do sonho não é tão interessante quanto a parte seguinte. Apenas eu e meus três companheiros de longa data jogando ping pong como nos velhos tempos.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Bruna, Griffin, e eu.





Fazia sol no meu caminho, e a Bruna me trazia água. Eu ligava, ela descia. Era uma jovem Bruna, jovem e boba Bruna. Eu não pensava a respeito de muita coisa naqueles momentos, apenas me refrescava. Deixava o tempo correr um pouco mais solto, como quem abre um pouco mais uma torneira. Bruna falava sobre seu namorado, e sobre coisas leves da vida, e sorria, e se balançava. Eu ria.

Num desses dias passou um carro, dirigido por uma mulher, e parou antes de passar. Era a mãe da Bruna. Eu olhei sem olhar, sorri sem sorrir e acenei sem acenar. Não teve significado nenhum aquele momento. Eu não sabia o que viria, nem a Bruna, nem a mãe da Bruna. Tão pouco sabíamos quando. O curso da vida muda como um tijolo arremessado contra a sua cabeça.

Enquanto eu pensava no Griffin, personagem do “MIB3” que aparentemente enxerga toda a historia nas suas infinitas possibilidades, lembrei desse momento. Não foi a última vez que eu vi a mãe da Bruna. Foi a primeira. Se eu fosse o Griffin, se eu fosse amigo do Griffin, se ele estivesse ali, talvez eu tivesse dado um pouco mais de atenção. Talvez eu pudesse fazer algo diferente.

Estranho um filme tão bobo ter um personagem tão profundo. A última vez que eu vi a mulher que dirigia aquele carro ela arregalava os olhos, e quase dava pra ver seu cérebro lutando para reconstruir cada caminho. As conexões caóticas gerando novos sentidos, buscando novas rotas, contornando o dano.

Talvez eu devesse ser mais presente na vida da moça sorridente que me servia água. Nosso caminho sempre se cruza assim, leve, breve, e carinhosamente sincero. Muita gente considera boba a pessoa que sorri e abraça quando a vida parece correr doce e fácil. Os mais carrancudos podem dizer “é fácil assim quando tudo é fácil”.

Diante de tantas dificuldades, os sorrisos e o abraços de Bruna só se mostraram mais sinceros, com todo peso e toda a dor coexistindo ao redor. Eu quase concordo um pouco com quem afirma que alegria em demasia é fruto de distorção. Mais eu acredito mais no sorriso e no olhar vívido da Bruna do que nas abundantes lagrimas de muitos.  

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Hoje eu ganhei o dia ontem

Acordei tarde. De tarde. Quase três, ou quase duas, mas mais que duas, tipo duas e meia, mas sem ser. Pensaria ter perdido o dia, mas não. O dia já era meu antes do sol chegar. Ganhei meu dia de hoje ontem ainda.

Direto para o almoço, sem café. Me deu saudade de café agora. Feijão, arroz, bife e farofa. O sol lascou e a tarde morgou rápido, mas doce, e no fim dela eu trouxe pão e café. Logo a noite trouxe um ônibus, veio sem eu pedir, sem esperar, nem pagar eu paguei, ela não tinha troco.

Foi-se o dia, e logo hoje já foi ontem. Estou aqui escrevendo no amanhã. Não tem pra onde voltar, fui pra amanhã e escrevi sobre ontem que era hoje, não é mais. Estou perdido. Saber disso me faz melhor do que aquele que acha que sabe onde está.

Ah! Importante! Eu vi hoje, na verdade era ontem, um pássaro parado no ar. Não batia as asas, não caia, não ia para frente ou para trás. Pairava imóvel o urubu, como uma ave empalhada nas alturas, flutuando inerte. Ficou lá um tempo e sumiu.


segunda-feira, 11 de junho de 2012

sobre não ser morto



Meus olhos procuram o celular com o relógio assim que abertos. Ainda eram nove e quarenta e cindo da manhã. O nome disso é pequena vitória. Banho, café, corrida. Em teoria tudo funciona bem. Na prática o sol quer te matar. Podemos conviver com a ausência da corrida matinal hoje. Somos, afinal, uma segunda, matar o leão nem sempre é uma opção. Não ser morto basta.

Temos uma cama no meio do quarto, enviesada. Lembramos o porquê dela estar assim? Roupas ainda estão espalhadas, meu tubarão nada pelo chão junto a cobertas, travesseiros, colchas e cabelos. Os livros caem como frutas maduras. Um suvenir francês expõe a pequena torre, com os restos do globo estilhaçados. Cada coisa volta pro seu lugar, uma a uma. Quando a condição da bagunça não reflete minha condição interna tudo se dissipa fácil.

Aqueles papéis espalhados se juntam numa mesa. Reorganizar, enxugar, reescrever, beber bastante água. Sete loucuras se fazem uma tabela. Diminuir a arrogância e aumentar a percepção da condição de aprendiz. Precisa de mais? Comer, esperar, dormir. Sentar na calçada, olhar para o céu, e contemplar. Meu sorriso bobo e leso vem com a noite, o filme, o vinho, a louça. Fim.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Mágica

Vinte e oito minutos do terceiro dia do quarto mês do ano de 2012. Somos uma terça relativamente silenciosa até agora. Os pensamentos vageando, desenhando um futuro possível. Nasce de algum lugar alguma ideia, e de alguma forma ela lhe parece interessante. Você elabora esse lampejo na sua mente. Olha em volta e procura enxergar esse lapso dentro duma realidade palpável. Você estuda, rascunha, escreve, desenha, redesenha, e, aos poucos, tenta. Soa impossível num primeiro momento, é um esforço grande, força as estruturas, você não está simplesmente copiando algo, houveram referências, um milhão de coisas te levaram aquele ponto, você está trazendo à tona algo único, algo que antes existiu apenas dentro da sua cabeça. Inadequado, tosco, ridicularizado talvez, e talvez até seja fraco e morra. No entanto, se sobreviver, pode tomar forma, crescer, tornar-se independente e procriar. Tive a experiência de transformar pessoas reais em personagens e com o tempo esquecer que eram pessoas reais. Num repente cruzei com uma dessas pessoas na rua, e saborear a epifania foi incrível. Quando você consegue executar algo do plano das ideias na realidade acontece parecido. Isso é mágica.

terça-feira, 20 de março de 2012

trapo

São quinze minutos de quarta-feira, amigo. Pela lei você deveria estar dormindo a duas horas. Ainda pela lei deveríamos ainda viver uma terça. No entanto, você está acordado, ainda tem algo a fazer. Não teve outra ideia além de escrever sobre o fato de que deve escrever. Tente entender você mesmo. Deu seu suor, o sumo de suas energias para contribuir com o lucro bilionário de duas multinacionais gigantescas. O seu melhor se esvaiu com os raios de sol. Também teve seu lucro, escorreu em alguns dos vícios que você sustenta para suportar sua difícil rotina. Lidar com toda essa massa ignorante, todos esses doentes, escarnecedores e estúpidos, cães de caça girando ensandecidos na ininterrupta tentativa de abocanhar os próprios rabos. Orgulhosos e vaidosos, girando. E veio a noite, e embriagado no dolce far niente você sucumbiu ao tempo. Mais um dia se fez findo e você ignorou a lei, foi infiel e incauto. Serviu aos cães, mas esqueceu-se de servir sua causa, e o estomago de seu senhor arde em fúria contra ti. Ai de mim, dormir e entregar esse dia como pérolas aos porcos, ai de mim! Minha oferta é um trapo, esticado como as horas longas desse dia, e sujo como meus pensamentos mais silenciosos. Não poderemos negar, porém, que na proporção da lucidez de suas deficiências cresce a certeza de sua presença, posto que não existindo, nem poderia ser corrido, nem feio, nem torto, nem nada.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Bloco

Lavou o rosto, tentando encontrar ânimo em algum lugar profundo, o mundo desmoronava em sua cabeça, dizer que sua vida estava de cabeça para baixo era errado, sua vida estava estilhaçada, dançando em pedaços caóticos pelo ar, e mais uma vez ele havia sido rejeitado, poderia quase sorrir, tão absurdas eram suas emoções, precisava engolir aquela tristeza goela abaixo e dar fim naquele dia amargo.

Seguiu de volta para sua tormenta, sua bata branca brandia contra o ar no andar apressado, as mangas compridas enrolavam-se no seu braço um tanto esbagaçadas, olheiras profundas escondiam-se atrás das lentes grossas, os cabelos, apesar de ainda curtos, denunciavam a ausência de um corte regular, seus colegas de empresa costumam parecer médicos ou enfermeiros andando dentro de um supermercado, ele se assemelhava mais a figura de um inquieto cientista maluco.

Ultrapassava seu horário em meia hora, alimentava a vaga esperança de permanecer apenas mais vinte minutos para finalizar suas atividades do dia, nos últimos três dias havia acumulado quase um dia a mais de trabalho, não queria repetir o doloroso processo, não recebia horas extras e simplesmente não conseguia se manter confortável com a sensação de estar trabalhando gratuitamente.

Repentinamente tudo desapareceu.

Naquele sapato o ultrapassava em altura, os tornozelos insinuavam maravilhosas pernas escondidas embaixo dum longo vestido azul, ou verde, ou amarelo, ou talvez ainda fosse apenas uma saia de tecido leve... longos cabelos ondulados bifurcavam-se sobre o ombro nu e alvo, ardiam num vermelho flamejante, o dedo indicador brincava hipinoticamente com seu lábio inferior, franzia o olhar, lendo as miúdas informações sobre alguma marca vagabunda de macarrão instantâneo.

Reconheceu facilmente aquele nariz afilado, o perfil élfico, havia música ali, ela e mais nada. Logo estava tão perto, e sussurrou como pode, talvez quase trêmulo, mas de forma alguma hesitante.

- posso te ajudar? -

Virou o rosto vagarosamente, fingindo distração, expondo delicadamente seu pescoço e finalmente cedeu seu olhar mágico. Nada poderia descrever o quanto ele se esforçou para refletir tudo que sentia naquele olhar, um brilho profundo denunciava a força de vários planetas explodindo dentro de tudo que se mostrava vivo nele, mantendo firme, sério, e absolutamente transparente.

Ela apenas insinuou um sorriso, e respondeu.

-Não, obrigada... to só dando uma olhadinha... -

Destroçado, desconcertado, perdido, imóvel, todas as palavras do universo deixaram de existir, e ele a assistiu ir embora, sem ao menos o reconhecer. O mundo foi se reconstruindo, até voltar finalmente a se fazer existente, e ao seu lado um homenzinho de traços indígenas e idade que poderia variar entre dezoito e quarenta anos sem muita certeza, apareceu parado, como se estivesse ali desde sempre, vagamente boquiaberto.

- caraca... -

disse o pequeno homem…

- pois é... -

Suspirou. Ouviu-se um estrondo em cascata, e todos olhares acompanharam uma avalanche de latas de leite condensado, e em algum lugar distante os passos de uma criança corriam para dentro do carro dos pais, recheados de temor e culpa. Iam-se cinco dias de trabalho em apenas três dias de vida.